Psicanálise & Quotidiano

22/02/2024

EXPEDIENTE

 

Centro da cidade, domingo, 18:30 da noite

Uma mulher se aproxima da esquina e derrama um pouco da cerveja que está em sua mão esquerda enquanto pronuncia algumas palavras. Ao terminar, descansa calmante a cerveja no chão e, em seguida, bate três palmas.

Está pronta para ir trabalhar.

      Passeava por algum lugar do centro da cidade quando a imagem que descrevi acima chamou minha atenção. A figura turva de uma mulher, de roupas brancas menores que a própria fé, destacava-se como um ponto de escuridão em meio à tanta luz. Num só gesto, pareceu confessar a angústia da solidão que se encontrava, firmou sua marca na encruzilhada e nas ruas das palavras que aqui estão. Na quietude daquela esquina, eu parecia estar prestes a presenciar o encontro de alguém consigo mesmo. Ao final do ritual, o silencio. Enquanto observo, me percebo identificado com sua expectativa e, juntos, aguardamos por mais alguns instantes. Ao leitor mais desatento, os minutos se passavam e nada acontecia. A cerveja não saiu do lugar, a moça não saiu do lugar, eu não saí do lugar, tudo parecia permanecer do mesmo jeito como numa fotografia. Nenhuma mão veio ao seu alcance. Nem para acariciar seu rosto, para estender-lhe um abraço fraterno, tampouco para arrebatar-lhe de seu sofrimento.

      Enquanto a observava, percebi que ela buscava algo ao redor. Deu passos em círculos, inquietos e pareceu soluçar um choro talvez nunca antes escutado. Um tipo especifico de murmúrio penoso, carregado de lamentações, que transduzia uma profunda sensação de abandono e desamparo, incapaz de ser escondido por sua minissaia. Parecia apelar a alguém que se compadecesse da pouca crença em si mesma. Alguém que ouvisse aquelas súplicas e intercedesse em seu juízo seja para protegê-la ou, quem sabe, para acabar depressa com sua agonia.

      Indicava saber, portanto, que com ela mesma não poderia contar. Precisava de alguém, com novidades que seriam um sonho, para lhe ajudar a suportar as intempéries que já lhe ocorriam e as que imaginava se apresentar num futuro próximo.

      O que tenho eu haver com esta moça? Do que tenho eu a tratar de seus gestos, suas vestes ou seus atos? Das utilidades que posso dar a minha loucura, escrever ainda é das mais proveitosas, mesmo não sendo uma conquista tão fácil. Acessar dentro de si e deixar escorrer pelas pontas dos dedos aquilo que o corpo acolhe e a mente transforma requer boas doses de humildade, coragem, paciência e criatividade. Penso que, de nossas tarefas diárias, não há nada mais presente do que a tentativa contínua de se apropriar e se utilizar da própria loucura. Admito que, quanto à minha, ainda estou me habituando às sintaxes e conjugações verbais que não costumam respeitar o português que aprendi na escola. Dessa linguagem sei ainda pouco e reconheço que, em determinados momentos, a relação é árdua ao ponto que se faz necessário recorrer a outras instâncias, geralmente mais rígidas e esteticamente menos elegantes.

      Tarefa difícil essa de passear pelas estradas sinuosas de nossas subjetividades. A incompletude e o inevitável vir-a-ser exige um permanente estado de dúvida para consigo mesmo o qual, por sua vez, pode acarretar em sensações de intensa ansiedade e angustia. Não posso afirmar, portanto, que sei o que se passava com a moça de minissaia. Não sei o nome, o endereço, do que ela sofre ou do que a faz sorrir. Não sei da história, dos traumas, e nem dos lamentos, tampouco sei se ela realmente existe. Sei, no entanto, que com o passar do tempo, a gente não se afastava. Ela permanecia ali na esquina assim como permanece dentro de mim.

      Por fim, pergunto ao leitor: o que tem feito com sua loucura particular? Penso que estendê-la a mão ali pelas encruzilhadas do corpo e abraça-la ali pelos caminhos da mente possa valer de grande utilidade.

 

Por: Rodrigo Dillan - Psicólogo, Psicoterapeuta de orientação psicanalítica pelo NPA, Coordenador do projeto Psicanálise e Cinema (NPA) e Coordenador do projeto Psicanálise e Literatura (NPA).

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Psicanálise e Quotidiano é o espaço destinado a publicações de textos curtos, sem cunho teórico, de forma acessível e com reflexões acerca de temas do dia a dia, através do olhar psicanalítico. A coordenação do projeto é de Danilo Goulart.