A Psicanálise, a Antropofagia e a pandemia: o que os aproxima?

04/02/2022

A Psicanálise, a Antropofagia e a pandemia: o que os aproxima?

 

“Para comer meus semelhantes, eis-me sentado à mesa”

                                                                                           Augusto dos Anjos (“Eu”, 1912)

 

 

 

        A fantasia das certezas, principalmente quando relacionadas ao futuro, pode nos dar uma ilusória tranquilidade, talvez por nutrirmos a doce ilusão de estarmos seguros, visto que imaginamos saber do momento seguinte. Ledo engano! Eu havia passado o sábado no curso de Psicoterapia Psicanalítica do NPA (Núcleo Psicanalítico de Aracaju) e já no final do dia, não por acaso, uma colega referiu-se ao movimento antropofágico que aconteceu aqui no Brasil no início do século XX, numa rápida alusão a um movimento que “comeu os elementos bons” da cultura estrangeira e eu me pus a pensar que algo ligava aquele movimento à Psicanálise, mais especificamente às teorias de Bion, cujas ideias havíamos mergulhado naquele dia. Pois bem, cheguei em casa sedenta e me pus a escrever. Texto pronto, porém na semana seguinte veio a pandemia. Chegou rápida e voraz trazendo com ela todas as incertezas, inseguranças e medos, mas com alguma possibilidade de aprendizado. A pandemia desconstruiu a doce ilusão de sabermos do momento seguinte. Todas as minhas ilusões de certezas haviam caído por terra. Existia em mim um misto de confusão e incredulidade. O meu texto já não mais fazia sentido para mim naquele momento e eu o engavetei. Na verdade, engavetar não é bem a palavra para descrever um texto esquecido em um arquivo do computador. Esqueci o texto, releguei-o ao nada, porque naquele momento era assim que me sentia: perdida no nada, em meio a sentimentos de incredulidade diante de uma pandemia, que chegara e se instalara de forma rápida e assustadora.  Pois bem, engavetei meu texto e meus pensamentos, como se dessa forma pudesse deixar tudo fora de mim. Era um engano, pois isso já estava em mim, muito mais do que eu supunha. Mas onde está o ponto de encontro aqui entre a antropofagia, a pandemia e a Psicanálise?

        Entende-se Antropofagia como um ritual em que se comia partes do corpo humano e algumas tribos indígenas acreditavam que ao comerem determinados órgãos, iriam ficar mais fortes no sentido de incorporar a cultura, a sabedoria do estrangeiro e dessa forma, podiam adquirir os aspectos importantes do outro. No poema I Juca Pirama de Gonçalves Dias, um índio guerreiro cai prisioneiro nas mãos dos Timbiras e o prisioneiro ao lembrar que havia deixado seu velho pai cego a esperá-lo, chora; o chefe da tribo ao vê-lo chorar fala: “E tu chorastes!... parte; não queremos com carne vil enfraquecer os fortes”.

        Rubem Alves, ao falar da sua experiência literária, diz: ‘Eu escrevo antropofagicamente: quero que me devorem. Eu leio antropofagicamente: quero devorar aquele que escreveu”. Em “Ostra feliz não faz pérola”, o escritor utiliza-se da metáfora da antropofagia comparando-a à magia da transformação, ao se comer o corpo de um morto para se apropriar das suas virtudes. Ele devora escritores e escreve na esperança de também ser devorado. Pois bem, há algum tempo também o tenho devorado sem nenhum pudor.

        Penso que o movimento antropofágico não foi um movimento de comer somente uma parte, a melhor porção do estrangeiro, mas sim, um movimento de comer todos os elementos da cultura estrangeira, inclusive aquelas partes que podiam causar indigestão. Esses elementos, misturados a outros da nossa cultura, foram digeridos e reelaborados. Isso abriu novos caminhos para a criação de uma nova arte, pois a partir da mistura desses vários elementos culturais, que foram processados e transformados, possibilitou-se a criação de uma arte mais brasileira, mais genuína, ou seja, da nossa arte diante dela mesma.

      Ora, e em que esse movimento, para mim, se aproxima da Psicanálise? Penso que é preciso acolher o nosso estrangeiro. Ele nos assusta, mas também nos possibilita que nos aproximemos de nós mesmos, quando o acolhemos. Assim acontece no trabalho psicanalítico, onde a dupla, analisando e analista, se aproxima desse estrangeiro e ambos vivem o sonho de uma experiência a dois, que pode possibilitar o encontro do paciente com ele mesmo. Nesse encontro e me remetendo a Bion, o analista precisa ter a capacidade de acolher o paciente com as suas angústias, de conter essas angústias, decodificá-las, elaborá-las, e assim, devolvê-las transformadas. Para que isso aconteça, é preciso que a dupla analista/analisando e nesse caso, principalmente o analista, suporte a angústia da existência de um não saber, a exemplo do estrangeiro que existe em cada um de nós e assim ele possa conter as próprias angústias. Dessa forma, os dois, analista e analisando poderão caminhar juntos, ambos acolhendo e tentando aproximar-se do seu próprio estrangeiro. 

      Acredito que não devoramos a cultura estrangeira, mas fizemos aquilo que numa relação analítica, o analista se propõe a fazer com o seu paciente quando o acolhe e o ajuda a chegar mais perto do seu incômodo. Penso que no início do século XX, o grupo brasileiro que estava mais antenado com a arte moderna estrangeira teve uma grande aproximação com a Psicanálise ao se colocar na função do analista, quando ao acolher elementos da arte estrangeira, decodificou-a, reelaborou-a e a ressignificou, apresentando-nos uma arte mais próxima de nós mesmos.  Isso abriu caminho para o desenvolvimento de uma arte mais nossa, mais verdadeira e autônoma. De forma semelhante, uma análise bem-sucedida abre caminho para que o analisando, desenvolva seu potencial criativo ao mergulhar no que lhe é estranho, possibilitando ser mais autônomo e verdadeiro consigo mesmo e com o mundo que o rodeia. 

        Eis aí meus pensamentos, que ficaram “engavetados” até esse momento, quase dois anos depois, quando percebi que a Psicanálise e simbolicamente a Antropofagia, naquele momento estavam atravessadas por tudo o que uma pandemia pode provocar no ser humano, no planeta. No início da pandemia, senti-me devorada e devorando. Deixava-me ser devorada por tantas informações, tantas lives, tantas notícias; ao mesmo tempo tentava devorar tudo o que encontrava pela frente, pois havia ali uma necessidade de tentar entender o momento. Ante essa necessidade e em meio ao caos que se instalou dentro de mim devorei livros, filmes e lives. Devorava por medo de ser devorada. Pior ainda: comia todas as partes, sem fazer a necessária digestão. Eu era o próprio bicho do poema de Manuel Bandeira “Quando achava alguma coisa, /Não examinava nem cheirava: /Engolia com voracidade”. Havia em mim um sentimento de que a pandemia era o estranho que naquele momento podia me devorar e assim eu me transformava numa feroz devoradora, o que dificultava minha capacidade de pensar. Na verdade, eu poderia ter sido devorada, pelo estranho vírus, mas também poderia ter me deixado devorar pelos meus próprios estranhos sentimentos. 

        Hoje, quase dois anos depois e acreditando que a pandemia esteja no seu final, percebo o quanto a Psicanálise me ajudou a fazer a digestão de tudo que vorazmente pus para dentro. O que ficou? O aprendizado de que mesmo em uma pandemia é possível sonhar. Pois bem, sigo, degustando e tentando desconstruir minhas fantasias de certezas.

 

 

Acácia Maria Sá Vilar

Psicóloga CRP 19/3430

Psicoterapeuta psicanalítica em formação pelo NPA

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Coordenação: Danilo Goulart