O monstro demasiadamente humano

30/11/2017

 

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Texto derivado de artigo publicado na Revista Psicanálise & Barroco (volume 15, 2017) - O monstro demasiadamente humano: o olhar da psicanálise sobre o desamparo”: Clique aqui para visualizar.

O monstro demasiadamente humano

A literatura e a psicanálise elaboram narrativas do conflito humano a seu próprio modo, mas com diversas possibilidades de interlocução. Os escritos literários foram significativos para o desenvolvimento do pensamento de Freud, basta lembrar de Édipo Rei de Sófocles, Hamlet de Shakespeare, Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski, Fausto de Goethe, O Homem de Areia de Hoffmann, entre outros. O fundador da psicanálise falava dos livros como  "bons amigos, aos quais devemos uma parcela do nosso conhecimento da vida e de nossa visão de mundo" (em 'Resposta a um questionário sobre leitura' de 1906).

Dessa maneira, os dramas e tessituras da humanidade foram uma importante matéria-prima para aquele que primeiro se debruçou com afinco acerca do inconsciente. Pensando nisso, resgato aqui uma importante obra – Frankestein (ou O Moderno Prometeu), escrita pela autora Mary Shelley quando tinha 19 anos. Seu pai era um conhecido filósofo e poeta, William Godwin. Sua mãe, Mary Wollstonecraft, um nome importante para o movimento feminista da época, faleceu durante o nascimento de Shelley.

Publicado em 1818, o impacto da obra Frankestein é evidenciado pelo tempo em que sua história perdura no imaginário ocidental, contando com uma diversidade de adaptações cinematográficas, principalmente. Assinalo nesse ponto um engano comum: Frankestein refere-se ao personagem do cientista que deu origem ao experimento: Dr. Victor Frankestein. Já a criatura, ao longo de toda a obra, sequer possui o direito de um nome próprio concedido. Esse anonimato não é desintencionado.

Victor Frankestein, de algum modo, personifica a ideia de redenção científica, que em seus progressos viria para dominar a provação da finitude da vida, mas que, entretanto, é incapaz de amar a sua cria. O embate entre homem e ciência na obra também representa o conflito entre o ser humano e suas próprias limitações.

O estranho familiar

Dentro do significado do termo monstro existe a noção do estranho, do que está fora do lugar e do que não é natural aos olhos da razão. Para Freud, entretanto, sempre atento aos paradoxos e as contradições, "o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (em 'O Estranho' de 1919). Nesse mesmo texto ele aponta que "a morte aparente e a reanimação dos mortos têm sido representadas como temas dos mais estranhos". Podemos hipotetizar, desse modo, se o fascínio provocado pela criatura de Frankestein não nos diz algo da noção de um estranho familiar. A psicanálise sinaliza a negação do que há de mais íntimo na figura do estranho.

No livro, Dr. Victor Frankestein inspira-se principalmente na determinação dos alquimistas em sua busca para revolucionar a matéria, interessando-se pelo elixir que garantiria a continuidade da vida sobre a morte. Desde cedo, Victor nutre paixão pela curiosidade e o conhecimento, obstinado pelo mistério das origens: "Para mim, o mundo era um segredo que eu procurava desvendar". Sua missão era de "banir a doença do organismo humano, tornando o homem invulnerável a todas as mortes". Para Freud, entretanto, a morte é um acontecimento natural da vida. Por outro lado, a negação da sua própria condição de finitude faz com que o ser humano, inconscientemente, esteja convencido de sua própria imortalidade.

Pouco antes de ingressar na universidade, Victor vivencia a dor da morte de sua mãe. Esse acontecimento parece intensificar a sua obstinação em explorar as forças que regem a criação e o fim. A morte e a finitude tornavam-se uma espécie de afronta contra o que é o homem. Em 'Sobre a Transitoriedade' (1915), Freud inicia o texto relatando uma caminhada por um campo na companhia de um amigo e um poeta. Apesar da beleza do lugar, narra que o poeta não conseguia extrair nenhuma alegria daquela paisagem, afinal, aquilo iria acabar quando chegasse o inverno. Freud sugere que o que prejudicou a fruição da beleza foi uma incapacidade de vivenciar o luto. Remetemos esse texto de Freud à história de Dr. Frankestein e sua postura diante da finitude das coisas.

A criatura nascendo de dois espantos

"Respirou. Sim, respirou com esforço, e um movimento convulso agitou-lhe os ombros". Nesse momento, a criatura de Frankestein abre os olhos. A matéria-prima do experimento do Dr. Victor para compor o seu experimento derivava de corpos humanos em necrotérios e matadouros. Ou seja, tratava-se de uma espécie de reanimação de vários corpos reunidos. Contudo, uma terrorífica surpresa se abate sobre Victor ao ver seu experimento: "Eis que, terminada minha escultura viva, esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser que me enchia de terror e repulsa". Destituído de inscrição subjetiva e acolhimento, a criatura sente-se abandonada a esmo em um mundo que não conhecia.

Freud posiciona a experiência do nascimento como uma experiência protótipa do desamparo. Segundo Ferenczi em 'A criança mal acolhida e sua pulsão de morte' de 1929, "a criança deve ser levada, por um prodigioso dispêndio de amor, de ternura e de cuidados, a perdoar aos pais por terem-na posto no mundo sem lhe perguntar qual era a sua intenção pois, em caso contrário, as pulsões de destruição logo entram em ação".

Os circuitos pulsionais do sujeito são constituídos a partir desse desamparo primordial e da sua necessidade de figuras que lhe invistam. Após fugir, a criatura persegue as pessoas significativas da vida de Victor. Para a psicanálise, sem a ilusão da autossuficiência no início da vida, o desamparo primordial intensifica-se. Andando a esmo pela cidade, em busca de abrigos improvisados, a criatura era recebida ora com repugnância ora com ódio por aqueles com quem cruzava, vivenciando o mundo sob o viés da exclusão.

A pergunta dos monstros

Para o autor Jeffrey Cohen, os monstros lançam uma pergunta fundamental aos humanos: "Por que nós fomos criados?". Em sua busca pelo ilimitável, o cientista deparou-se com a demanda de amor daquilo que vive e sente. Tanto o cientista quanto a sua cria representam, desse modo, dilemas profundos da humanidade. A criatura de Frankestein reconhece-se como monstro a partir do não-reconhecimento do outro, difundindo seu desajuste para a sua existência de uma maneira geral. O monstro é entendido aqui como um ser demasiadamente humano.

O desamparo humano face à insuficiência para sobreviver nos lança para a dimensão da demanda por amor. Os monstros ou as figuras monstruosas, assim, muitas vezes revelam aspectos do imaginário, desejos inconscientes, conflitos reprimidos, vazios que não têm nome. O sentimento do ser não provém do nascimento, mas da experiência. De tal maneira, a obra de Mary Shelley levanta questionamentos éticos e existenciais que cruzam o tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COHEN, J. J. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In: FERENCZI, Sándor. Obras completas – Vol. IV. São Paulo: Martins Fontes, 1929/1992.

FREUD, S.O Estranho. In: FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas (Vol. XVII). Rio de Janeiro: Imago, 1919/2006.FREUD, S. Resposta a um questionário sobre leitura. In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. IX). Rio de Janeiro: Imago, 1906/2006.FREUD, S. Sobre a transitoriedade. In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1915/2006.

Rafael Santos Barboza

Psicólogo (CRP 19/3145)

Psicoterapeuta com orientação psicanalítica

Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) [email protected]