Sobre andar de bicicleta...

16/06/2015

 

Sobre andar de bicicleta...

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Lembro-me de ano passado estar numa viagem pelos Estados Unidos na qual havia turistas de vários países, e as pessoas perguntavam da atual situação política e econômica de cada país. Um turista espanhol pergunta a um brasileiro sentado ao meu lado o que ele achava do governo. Leia-se que no mês de maio do ano passado nem estávamos ainda no período eleitoral, que posteriormente manteve o atual partido no poder. Fiquei esperando a posição do colega de excursão, seria de direita, de esquerda? Que imagem ele levaria do meu país naqueles instantes, numa conversa que começou descontraída... E como eu como brasileira me posicionaria... me manteria calada? Sentir-me-ia representada pelas palavras de um estranho compatriota? Ou travaria com ele um embate partidário durante uma excursão de férias?

Bem, a reposta dele me foi tocante e surpreende, e infelizmente tive que concordar ao ouvi-lo dizer: “Eu não costumo falar mal do meu país, mas o maior problema do Brasil atualmente é que a vida não vale nada”. Já não se mata só para roubar, por interesse, por brigas de torcidas em estádios, por sequestro, por rebeldia, se mata por nada.

Vivo numa cidade onde felizmente a violência não assombra os moradores tal como se noticia cotidianamente nas grandes metrópoles, mas não deixo de me consternar por um lugar tão lindo como o Rio de Janeiro sendo palco de mortes brutais como a de um médico que saiu de casa para andar de bicicleta. E quando soube que se tratava de um médico que prestava serviço a uma população carente que não tinha acesso à saúde tal fato quase chega a ser uma ironia. Ele não reagiu ao assalto...não se negou a entregar a bicicleta, foi morto por nada... Não me atreveria a discutir a questão da redução da maioridade penal,pois facilmente incidiria no “leito de Procusto”... Prefiro refletir sobre esses menores, adolescentes que deveriam estar andando de bicicleta na Lagoa, mas estão matando em vão cidadãos que nem mesmo lhe representam uma ameaça.

Além da vulnerabilidade que assombra pessoas em atividades comuns, em um local escolhido para ser um cenário olímpico, é chocante ouvir as atitudes que serão tomadas pelos moradores dos arredores: ou se aprisionar dentro de casa, ou sair contando com a sorte de, no caso de um assalto, ser abordado por um bandido profissional que vai levar apenas seus pertences e não a sua vida.

Penso que não se trata só da questão da violência que no nosso país se apresenta como uma crescente avassaladora, mas da perda da liberdade de ir e vir, e que o ato de andar de bicicleta se faz uma oportuna metáfora. Um movimento que exige equilíbrio, que se aprende geralmente quando criança, num processo gradativo, e que por mais que se passem anos sem pedalar jamais se esquece. Penso que esses fatos, acontecendo longe ou perto de nós, invadem de perplexidade a nossa mente e nos deixam em posição de alerta para o perigo que é viver. E nos cerceiam de uma liberdade que deveria ser natural, sem prerrogativas.

Obviamente que não se trata de uma realidade exclusivamente brasileira. O mundo da minha infância, de subir em árvores e apanhar fruta no pé, de brincar na rua até o escurecer sem perigo, não será a realidade dos meus filhos, mas ainda assim sempre existirá infância, adolescência e as seguintes fases da vida. Resta saber como vamos nos adaptar à atual civilização, sem que o viver se torne tão perigoso, a vida tão frágil e a liberdade um privilégio do tempo perdido.

Thalita Gabínio e Souza

Psicóloga CRP 14/03574-6, psicoterapeuta

e candidata em formação psicanalítica pela

Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul

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data de publicação: 16/06/2015