Nosso infinito e o do mar

17/12/2015

 

 

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Caminhava na praia, um dia, até me ver envolvido por uma imagem que chamou a minha atenção. Era de uma criança, talvez com uns cinco anos de idade, que corria sem destino em direção ao mar, iluminada pelas luzes sossegadas do Sol de um fim de tarde. Lançava-se para um lado de braços abertos, rodopiava, chacoalhava, colocava as mãos em forma de concha na água, caía, seguia uma direção contrária. Aventurava-se com aquelas ondas que calmamente chegavam na beira. Acima, um céu limpo, envolvido pelo barulho da praia e por um avião que encontrava as nuvens. Talvez, aqueles passageiros também estivessem tentando curtir o mar ao seu modo, imaginei, esticando-se um pouco da poltrona até a janela para vislumbrar sua imensidão, mesmo que por uma fresta.

Naquele momento, eu, a criança e aqueles que voavam, ao menos na minha imaginação e sentido que eu dava para aquela cena, conectavam-se à sua própria maneira através do mar: seu infinito que encanta, sua misteriosa imensidão. É algo comum ouvir de amigos que moram em lugares sem praia, principalmente aqueles que viveram a maior parte do tempo por perto dela, a saudade e a falta que a mera possibilidade de avistá-la traz.

E o que será que nos diz essa sensação de que “o mar não está longe?”. Creio que, de alguma maneira, a imensidão do mar desperta a imensidão que existe dentro de nós. Um infinito que se dá em termos de afetividade e sentimento, não em questão de quantidade, pois o infinito, nesse caso, passa pela riqueza de possibilidades, mais do que não ter fim. Mesmo não estando visível, portanto, posso dizer a meus amigos que moram em lugares sem praia que o mar está em todo lugar.

“Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem”, escreveu o escritor baiano Jorge Amado. O mergulhador francês Jacques-Yves Cousteau costumava dizer em entrevistas que, após ter inventado o aparelho Aqualung (um cilindro de ar comprimido), parou de ter um dos seus sonhos mais recorrentes: o de voar.

O próprio ambiente uterino em que a criança se desenvolve é líquido – um aspecto que facilita a ligação e comunicação com a mãe, além da proteção contra impactos. Assim, “todo mamífero, todo ser humano, passou na água a primeira fase de sua existência, isto é, mergulhado como embrião no líquido amniótico do ventre materno, tendo saído da água ao nascer” (Freud, Conferências Introdutórias à Psicanálise: 1916-1917). Em 1926, através do texto “Inibições, sintomas e angústia”, o mesmo autor antecipava uma discussão bastante moderna: “[...] há muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infância, do que a impressionante cesura que o ato do nascimento nos permite acreditar”. Lembro ainda a reflexão dentro da psicanálise acerca do “sentimento oceânico”, em referência à procura de um senso de unicidade ligado à busca desejosa do humano por um retorno fusional com o mundo, diluindo-se novamente alguma fronteira.

Biologicamente, a presença da água no planeta é mais do que fundamental para a vida na Terra e o seu descuido é a nossa morte. Pelo mar também correm fluxos, a exemplo do que ocorre em nosso próprio corpo. O mar abriga vida nas suas mais recônditas profundezas, também não muito diferente do que ocorre com os seres humanos em relação ao inconsciente. Seres orgânicos, inorgânicos, navios naufragados, riqueza, nutrientes, diversidade. Mares revoltos, marolas que flutuam, ondas que ganham vida e força e aquelas que descansam. Como uma caixa fechada sob o céu aberto, guardando seus segredos entre a calmaria da vida marinha e a primitividade, fazendo-nos beirar entre a mais completa incompreensão e o absoluto entendimento.

A visão do mar é do algo a mais, do que é imaginado e criado por baixo do véu azulado das águas e do céu, em nossa busca por um leque de possibilidades. Olhos que enxergam de dentro para fora. Em uma das cenas do filme espanhol Mar Adentro, o personagem principal, acometido por um acidente durante mergulho que o deixou sem a capacidade motora do corpo, dizia que podia ver e passear pelo mar da sua cama, mesmo sem enxergá-lo concretamente. O que acreditamos que o mar está dizendo para nós talvez seja o que queremos ou podemos dizer para ele.

Abrir-se para o mar é nos colocar diante do imenso: o nosso e também dele. Não estaria próximo um psicanalista ou psicoterapeuta em relação com seu paciente da mesma forma que quando aproximamos uma concha em forma de espiral ao nosso ouvido e escutamos o barulho do mar ali reunido – no caso do paciente, o seu mar interior -, de forma ecoada e amplificada?

Aquela tarde chegava ao fim, o som envolvente da rebentação continuava, as luzes do Sol terminavam de se esparramar pela superfície e a brisa salgada envolvia o ar. Mesmo separados, eu olhando a criança, a criança correndo na areia diante do seu horizonte e, logo em cima, os passageiros no avião, o mar conectava a todos em sua imensidão. E de lá todos continuamos, navegando...

Rafael Santos Barboza

Psicólogo (CRP 19/3145)

Psicoterapeuta com orientação psicanalítica

Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) [email protected]