Você também acha que o tempo já vivido foi o melhor?

30/09/2014

 

Você também acha que o tempo já vivido foi o melhor?

 

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“Meia noite em Paris!”, anuncia um sino de uma igreja no filme de mesmo nome, dirigido por Wood Allen (2011). A partir desse momento o artista nos convida a refletir através desta ficção sobre nossas vidas, durante uma experiência fantástica em que o personagem principal viaja no tempo e volta à Paris dos anos 20.

Utilizarei algumas questões abordadas neste filme para refletir sobre a queixa comum de algumas pessoas que lamentam sobre o tempo que já passou. Como se lá, no passado, tivesse havido um momento pleno que hoje não há mais.

O filme traz, num ritmo acelerado, inúmeras informações acerca de evoluções científicas e culturais, com intelectuais talentosos, obras primas e lugares pitorescos que vão dando uma dimensão de nossa pequenez humana, da dificuldade que temos de registrar tudo o que se passa, dentro e fora de nossas mentes. O tempo das cenas é real, veloz e furtivo. Escorre pelas mãos e pela apreensão.

Mas o que é tempo?

No sentido estrito, tempo é um intervalo ou período de duração entre dois pontos, o início e o fim. Isso permite a ordenação de presente, passado e futuro.

E psiquicamente falando, quanto tempo o tempo tem?

Quanto dura a felicidade? E a dor? Quanto tempo levamos para aceitar o nascimento de alguém? E a morte do outro? Estamos falando do tempo de elaboração, aquele que varia para cada indivíduo; o que é medido subjetivamente. Podemos expandir essa ideia a outros tipos de nascimentos e mortes ao longo da vida. Passamos por diversos períodos, diferentes experiências e vários acontecimentos. Os classificamos em presente, passado e futuro, numa tentativa de ordenar o caos interno. Lá, tudo se mistura a ponto de uma lembrança e a ideia sobre esta terem os seus limites pouco delineados, confundindo-se uma com a outra. Transformamos realidades em versões particulares que carregamos secretamente como “nossas verdades”; que são nada mais que construções ficcionais próprias. Filmes em que somos nós os diretores.

O presente é puro, límpido, mas fugaz! É a experiência emocional em si. Vivemos, predominantemente, entre a memória do tempo que passou e a fantasia sobre o tempo que virá. Quanto ao primeiro, tentamos retê-lo o mais possível. Com relação ao segundo, buscamos onipotentemente, prevê-lo, controlá-lo. Buscamos antecipá-lo em nossas mentes. Quem sabe, tentando evitar surpresas desagradáveis?

Como a memória, que não é fidedigna, a fantasia tampouco o é! Ambas se mesclam, confusamente. A tentativa de apreensão do tempo é vã e repleta de interferências, como as emoções. A sensação de que as vivências passadas pertencem a um tempo perfeito é tão falsa e ingênua quanto as ilusões sobre um futuro exato. Passado e futuro em sua pureza, são intocáveis, inatingíveis. Entretanto, interferem e norteiam nossas relações com o espremido presente.

O personagem do filme, Gil, é um obcecado por um tempo que já passou e que fantasia que lá estaria o verdadeiro prazer em viver, a máxima possibilidade criativa, a tal felicidade suprema que procura, desesperadamente. Questiona-se sobre sua escolha e capacidade profissionais, sua eleição amorosa, a cidade predileta, a música preferida... Tanto que denominou de “a idade do ouro” este tempo que idealiza, aludindo à “Era do ouro”, expressão advinda da mitologia grega, que se refere a um tempo do início da humanidade, supostamente percebido como ideal, utópico, quando o Homem era puro e imortal. Esse ambiente idílico, imaginado por diversos artistas chama-se Arcádia.

Como mencionei, comumente ouvimos pessoas re-clamarem por um passado onde supostamente reinaria a paz e a felicidade absolutas. Talvez clamando pelo retorno ao “reino intrauterino”, onde quem sabe, não tenha havido frustração. Lá, pelo menos, enquanto éramos imaturos e totalmente dependentes, não tínhamos a noção da total vulnerabilidade e desamparo em que viveríamos, intrínsecos ao ser humano.

No filme, Gil escreve um romance que se passa numa loja retrô, chamada “Fuga ao passado.” Simbolicamente, parece buscar fugir da realidade atual que lhe frustra, rumo a um lugar e tempo que idealiza. Entretanto, num profundo e sofrido diálogo interno, conclui sabiamente que sua capacidade criativa não depende do lugar ou tempo em que está, assim como suas possibilidades de escolha ou sua probabilidade de ser feliz.

Mas então, a felicidade hoje, depende de quê?

Acredito, tal como o personagem propõe, que depende inicialmente de admitirmos a necessidade de mudança. Não para outro tempo. Mas para outra perspectiva. É necessário viver sendo quem se é hoje. Deixar-se fruir sem censura. Libertar-se do previsível e deixar-se levar pela imaginação. Pode-se romper com o status quo e reconhecer as insatisfações atuais, reconsiderando o rumo das escolhas. Mas, jamais deixar de reconhecer e preservar o que há de bom no presente ou em qualquer tempo! Enfim, como nos ensina o diretor do filme: é preciso enfrentar a mudança como quem “encara uma fera de frente”.

Talvez, por vezes, seja necessário visitarmos o passado, em nossa Arcádia particular, segura, pacífica...idealizada. Mas apenas para nos reabastecermos e não ficarmos aprisionados lá.

Viver o presente e a felicidade imediata de forma desesperada, conforme propõe o filósofo André Comte-Sponville, é o que nos ajuda a alcançarmos a felicidade de forma real e não ideal. Recomenda viver total e intensamente a felicidade daquilo que se desejou e se alcançou. Daquilo que existe. E não daquilo que imaginamos. (Sponville, 2001).

E o presente? Efêmero! O presente é tudo o que temos. Ou ouvimos o sino interior que nos remete à reflexão, ou poderá ser tarde demais.

Iara Lucchese Wiehe

Psicóloga,

Presidente da Associação dos Candidatos da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

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data de publicação: 30/09/2014