Vai ter Copa? O espaço do torcer e o espaço do pensar

04/02/2014

 

Vai ter Copa? O espaço do torcer e o espaço do pensar

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Alguma coisa está fora da ordem, diria Caetano. Á medida em que estamos a pouco mais de 4 meses da Copa, vemos movimentações quase contraditórias. Por um lado, engajam-se empresas e governos, em torno da “Copa de Todos”, da “Copa das Copas”, as campanhas publicitárias vão sendo estruturadas, os outdoors vão surgindo. Por outro, o mundo assiste um tanto assombrado às movimentações do povo brasileiro. Pelas redes sociais, aparecem gritos de “Não vai ter Copa”, há cobrança, desgosto. Por que esse povo, tão identificado com o esporte, maior colecionador de troféus na história, haveria de não querer celebrar seu maior evento? O país do futebol pode ficar sem Copa?

Poderíamos dizer que o buraco, obviamente, fica mais embaixo. As manifestações de junho passado, em torno da Copa das Confederações, iniciaram um movimento que ninguém, nem políticos, nem jornalistas (e talvez nem psicanalistas) conseguiram de fato entender. Eu certamente não entendi, mas me proponho a colocar aqui minhas associações a respeito. Pois que, na esteira justamente do futebol, colocado sempre no lugar de “ópio das massas”, surge uma oportunidade rara para o povo: a oportunidade de pensar.

Tradicionalmente, poucos associariam o futebol a uma grande maturidade de pensamento. E não estariam errados, creio eu. O futebol sempre ofereceu aos que o acompanham descargas mais “fáceis” para as angústias e questões do dia a dia. Em meio aos outros milhares de torcedores, nos estádios, o objetivo é simples: a vitória. E quando ela vem, se abraçam todos, desconhecidos, das mais variadas origens e cores. É uma experiência libertadora, talvez quase religiosa – a união entre milhares e a redução de toda a complexidade do mundo ao “nós contra eles”. Se meu time puder ao menos marcar um gol, posso ir embora para casa tranquilo. Quantos não conhecem essa história? A da pessoa que, se seu time vence, fica feliz, eufórica. E se perde, irascível ou depressiva? O futebol mexe com necessidades muito básicas do homem, como suas necessidades de aceitação em grupo (o que é bastante ajudado pelos uniformes) e suas necessidades de expressão de sua agressividade (o que os árbitros podem facilmente atestar).

Se tal devoção é saudável ou não, se é boa ou ruim, é uma questão um tanto mais complexa. O que nos leva a outra reflexão, que diz respeito a outro espaço mental: o espaço do pensar. Pensar é uma atividade imensamente mais difícil do que o torcer, do que o agir. Enquanto o torcer tem relação com descargas de energia, o pensamento tem conexão com a retenção dela a fim de se encontrar a melhor resposta. É uma atividade que produz um bocado de angústia, justamente por ser um processo que evita a saída mais fácil, a da descarga simplificada.

A reunião em grupos (sejam amigos, torcidas, partidos), a defesa das bandeiras (de futebol ou de outras coisas), são todos mecanismos que reduzem o nível de pensamento para que seja possível a convergência em torno de um destino (um time ou um candidato, por exemplo). Esse processo é vital para a civilização, de uma maneira fácil de se imaginar: se todos tivéssemos que lidar com as mínimas diferenças de todos os participantes de uma torcida, antes de decidir que poderíamos torcer para alguém, não haveria uma só decisão tomada no mundo.

Porém, como as manifestações de junho passado nos mostraram, há muito mais coisa por trás do futebol do que imaginávamos. E poderíamos pensar que esse seria o “inconsciente” do futebol: o mundo das decisões econômicas das vendas milionárias, e das decisões políticas que envolvem a todos nós, os anfitriões.

A chance que temos agora, neste próximo junho, é justamente a de poder trafegar em ambos os espaços: o do torcer, apoiar nossos times e, por que não, nosso país como um todo. Mas também teremos oportunidade para exercitar nosso pensamento, de que há muito dinheiro e muita política por trás de toda a estrutura e festa sendo montada. Como isso afeta a todos nós e ao nosso futuro? Não é um tempo de respostas fáceis, e nenhum jornal ou revista poderá explicar facilmente o que aconteceu ou acontecerá. Mas essa é a batalha do pensamento: a de persistir apesar da resistência em busca dos caminhos mais saudáveis, seja para uma pessoa, seja para toda a sociedade.

Leonardo Siqueira Araújo

Membro do Instituto de Psicanálise do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais

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data de publicação: 04/02/2014