O tempo que abarca o todo

29/04/2014

 

O tempo que abarca o todo.

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Dizer que a arte ainda é uma forma de nos movermos diante do inapreensível da vida não é nada tão surpreendente, isso já fora dito, mas precisamos repetir quantas vezes for necessário. Precisamos falar, sim, de algo que experimentamos e que foge à realidade do cotidiano vivido. A experiência artística é capaz de nos transportar para outro lugar, entre o familiar e o estranho, e o artista é aquele cujo olho se concentra no detalhe da vida. Se não contássemos com esse gesto de criação, possivelmente a vida passaria a não ser inventada/reinventada, e esse detalhe feneceria na obscuridade.

O quadro de Suel possui este qualitativo, um olhar em sentinela: uma mulher com os sulcos das marcas do vivido em sua face, no instante de evocar um grito; um calango verde em pose magistral rumo ao ataque de uma mosca. A beleza proporcionada pela harmonia e o contraste das cores, a captura do momento presente naquela instantaneidade reivindicam a busca do mistério presente(s) na fala cotidiana.

A cena do quadro, composta de delicados traços pincelados, vai nos lembrar um ensaio de Blanchot (2007), A fala cotidiana, que inicia com a seguinte frase: “O cotidiano: o que há de mais difícil de se descobrir.”O texto tem a intenção de discutir a excentricidade do dia a dia, da imprecisão do presente vivido, do tempo em que mergulhamos e de que nos afastamos.

Quantas inquietações podem suscitar essa pintura que colhe referentes da vida diária: o rosto de uma mulher, um calango, e uma mosca. O aparentemente ordinário vai se revelando em extraordinário. Um grito contido de dor, prazer, aversão está sendo velado e também desvelado pelas expressões na face de um ser humano, um movimento de sedução e sagacidade do réptil que mira sua presa (mosca), ali tão dispersa.

 

Ficamos completamente fascinados pela relação dos opostos que as imagens do quadro provocam - a ambiguidade do velar/desvelar, do visível/invisível, deslizando e atolando, retendo a memória enquanto sentimos que já a perdemos, como um estar aí/não estar aí.

A figura retratada pelo pintor contém expressões que movem o grande enigma do cotidiano, a dança da vida vestida do milagre que penetra a imprevisibilidade do acaso. A “verdade” é alcançada, não em um tempo linear, mas num tempo que conjuga todos os tempos (passado, presente, futuro). Lembra o tempo mítico onde o presente não cessa e o passado é rememorado, apontando para um futuro que se almeja alcançar.

Nesta perspectiva podemos refletir aqui sobre a trajetória da história (que se faz no cotidiano) e que não obedece à linearidade, não existe um olhar imutável sobre o mundo no qual vivemos. O território da história está aberto à comunicação com outros saberes, e o fazer social é conseqüência de continuidades e descontinuidades, mutações e permanências.

Quando nossos olhos se atêm à obra, podemos observar um arranjo paradoxal, o tempo não para, o quadro não destrói a ultrapassagem, pelo contrário, cada desenho tem um ensejo em cada instante, fazendo-se visível num sempre por vir. “[...] A pintura não busca o exterior do movimento, mas sim suas cifras secretas.” (MERLEAU-PONTY).

Com isso não podemos deixar de nos reportar à teoria da compulsão formulada por Freud. Estaremos sempre a nos repetir para alcançar aquilo que nos incomoda, ou aquilo que desconhecemos. O conhecer possui suas lacunas. É impossível esgotar as perguntas que insistem em nos incomodar.

O cotidiano expresso no quadro de Suel: “O silêncio a um segundo antes do ataque”, vai nos transportar a esse pedaço de existência impermeável e, no entanto, translúcida, silenciosa, mas que alucina em murmúrio da coisa não dita, que é a voz do humano, dos animais e das coisas em nós, a nossa volta.

Cristina de Macedo

Postulante à Formação Psicanalítica - NPA/SPRPE

Psicóloga, Psicoterapeuta

Mestre em Estudos literários pela UFAL

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data de publicação: 29/04/2014