O menino dos dedos de agasalho

07/12/2014

 

 

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O menino dos dedos de agasalho

No caminho, que estava longe de ser tão longo, para que eu pudesse chegar em casa, me deparei com um acontecimento que irei lhes contar cara(o), leitora(o). Quanta coisa passa desapercebida e quanta coisa é percebida na passagem dos trajetos que nos movimentamos.

Assim, descendo a ladeira da rodoviária nova, já não tão nova, num instante em que o sinal havia fechado, foi se aproximando silenciosa e lentamente, do carro que eu guiava, um garoto magrinho, de olhos cor de mel. Seu olhar me pedia aproximação, e logo tivera a minha resposta com um sorriso.

Qual o que?” Como diria Chico Buarque. A minha perplexidade chegara instantaneamente. Ao invés de correr para tirar a poeira do vidro da frente, começou a limpar o retrovisor (lugar geralmente esquecido dos limpadores de vidro de automóveis).

Iniciou a operação com zelo e bem cuidadosamente, tocava com seus dedos frágeis o espelho. Circulava a sua flanela amarela e desbotada, girando para um lado e para outro com toda calma do mundo. Agasalhava o tecido como quem agasalha a si mesmo, trazendo para ele próprio, o que dele foi retirado. Uma criança pertence ao mundo do brincar, em sua idade, o trabalho deveria lhe vir bem mais adiante.

Na ocasião, me perguntava: - com quem aquele menino aprendeu a ser tão delicado? - Quem o ensinou a arte de não invadir o espaço do outro? - Como ele conseguiu aprender que com um indício de leveza podemos nos contrapor à dureza do viver? - Ou será que não foi preciso ensinamento de alguém? - É um traço seu singular?

O sinal não demora, a vida corre em fluxo convulso… Passou o vermelho, o amarelo e o verde abriu o rumo, devolvendo para mim que a furiosa existência possui a sua face suave. A face da espera, da tolerância e do respeito aos limites do outro.

Diante de forças pulsionais que regem nosso psiquismo Eros e Tânatos - podemos fazer sobressair o amor, o ódio, o comedimento, a voracidade, a construtividade, a destrutividade. Aquele garoto escolhe a via da afabilidade – o caminho construtivo por onde podemos nos afeiçoar e nos vincular ao outro.

Queria encontrar aquele pequeno, de dedos de agasalho, para agradecer a beleza do seu gesto, um gesto que move o cotidiano, esse lugar onde parece que tudo é rotina e não é. É exatamente ele, o cotidiano que se veste de surpresas, de mistérios e de inquietudes na proximidade das coisas circundantes, isso, o cotidiano somos todos nós costumeiramente. É nele, o que há de mais agudo de descobrir.

Cristina de Macedo

Candidata em Formação Psicanalítica - NPM/SPRPE

Psicóloga, Psicoterapeuta

Mestre em Estudos literários pela UFAL

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