A delinquência nossa de cada dia

19/11/2013

 

A delinquência nossa de cada dia

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Há poucos meses as manchetes de jornal estampavam a notícia de que um grupo de adolescentes de classe média haviam espancado uma empregada doméstica num ponto de ônibus. Descobriu-se pouco depois que não havia sido um caso isolado. Vez em quando recebemos atônitos notícias como esta. Quem não se lembra do índio queimado vivo em Brasília por jovens como estes? Assistimos, não menos estarrecidos, o depoimento dos pais desses garotos, constrangidos e um tanto perdidos, a dizer que nada sabiam sobre o comportamento dos filhos. Parece mais fácil compreender a delinquência quando ocorre com jovens favelados, desfavorecidos, maltratados, injustiçados. Mas o que se passa quando jovens cheios de vida e oportunidades cometem atos de vandalismo ou de tamanha violência e destrutividade como estes?

Se compreendermos que a paz absoluta é um conceito que se refere a coisas inanimadas, inorgânicas ou mortas, podemos facilmente deduzir que a vida se constitui num fenômeno altamente perturbador. Não será difícil constatar essa afirmação se observarmos o descomunal esforço que cada ser vivo empreende para se manter vivo. Viver não é coisa fácil mesmo.

Também sabemos que desde a origem da vida no planeta coexistem forças construtivas e destrutivas, o bem e o mal, instâncias angelicais e demoníacas. Obviamente não falo em sentido místico-religioso, porém em sentido simbólico. Não é sequer novidade que tais forças estão presentes também e em especial na espécie humana e para não divagarmos muito longe no tempo histórico é suficiente nos reportarmos, como exemplo, ao holocausto ou mesmo à criminalidade presente desde o início dos tempos da aventura humana contrastando com os espetaculares progressos alcançados nas mais diversas ciências.

Entretanto, as investigações e pesquisas psicanalíticas nos mostram que tais forças angelicais e demoníacas estão presentes no mais íntimo de todo e cada ser humano, com pequenas variações culturais. O que isso quer dizer? Significa que no interior de cada ser humano convivem forças construtivas e destrutivas, amor e ódio, anjos e demônios. Mais ainda, que no mais profundo de nossos inconscientes ou de nossas almas, convivem instintos capazes de nos mover no sentido de criarmos feitos maravilhosos como a civilização e a cultura, as conquistas científicas e tecnológicas, mas também impulsos de natureza perversa, destrutiva, homicida. O fundamental equilíbrio entre essas forças, auxiliadas pelo meio que vai do berço à própria continência da civilização que construímos, faz com que, na maioria das vezes, também a nossa agressividade seja utilizada de maneira construtiva, seja como defesa contra o que nos ameaça, seja como estímulo às nossas conquistas.

Sabemos que para que ocorra este equilíbrio razoavelmente estável, os impulsos destrutivos e violentos que nascem com cada criança precisam ser acolhidos por uma função materna benevolente e acolhedora, continente amoroso e seguro para que a agressividade seja “civilizada” e se alie às forças de vida num funcionamento agregador e construtivo. Não menos importante se faz a presença do pai, que amorosamente protege, introduz o bebê na cultura, oferece limites firmes e estruturantes e alternativas para que a frustração do desejo seja suportada, com ética, consideração pelo outro, pelo diferente e respeito à verdade.

Podemos pensar então, que quanto mais jovem é a criança maior é a sua agressividade e destrutividade em potencial, e que, à medida que o desenvolvimento se dá, essas potencialidades vão pouco a pouco sendo inibidas ou sublimadas, mas jamais extintas. Casos como estes noticiados recentemente, de delinquência, violência e agressividade sem controle e aparentemente gratuitas, praticados por jovens adolescentes de classe média ou mesmo alta, denunciam terrivelmente a falência e o fracasso das famílias em formar pessoas de bem, vítimas de um sistema de sociedade pós-moderna não menos fracassado, em que as mães são obrigadas a deixar os seus filhos cada vez mais cedo, forçadas a produzir e a competir no mercado de trabalho e em que os pais substituem o afeto e a sua presença organizadora na família por bens materiais e suspensão dos limites, quando a verdade é suprimida e o pensar repudiado.

Ao mesmo tempo assistimos boa parte de nossa classe política (eleitos como nossos representantes, símbolos paternos de proteção, ética e cuidados) se envolver em escândalos de corrupção, deslealdade, descompromisso, desrespeito à responsabilidade e à ética. Alia-se a isto a fantasia de impunidade que se alastra pela sociedade e atinge em cheio as nossas crianças, os mais jovens e os mais imaturos.

A pergunta “o que se passa com nossas crianças e jovens?” poderia e, a meu ver, deveria, ser substituída por “o que se passa com nós mesmos, que estamos perdendo a capacidade de nos indignar, que não percebemos o legado de ausência que estamos deixando a esta e às futuras gerações?”

Adalberto Goulart

Membro Efetivo e Analista Didata IPA - NPA/SPRPE

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data de publicação: 19/11/2013